Por Ana Maria Orlando
Resumo
Um grupo de crianças reunidas nas atividades de uma organização não governamental na Ilha de Santa Catarina experimenta o fazer teatral no âmbito de um estágio em Licenciatura em Artes Cênicas, da Universidade Estadual de Santa Catarina. A partir de elementos do drama inglês, teatro em trânsito, contação de histórias e jogos de improvisação teatral é montada uma pequena encenação final. O sucesso da experiência e o entusiasmo da comunidade composta pelas crianças, professora, profissionais da ONG, pais, parentes e amigos conduz a uma reflexão orientada por alguns aspectos da Pedagogia da Autonomia de Paulo Freire.
As estrelas do mar
As estrelas do mar do Pântano do Sul, localidade no extremo sul da Ilha de Santa Catarina, habitam o seco: vivem em casas no ambiente terrestre, oxigenadas por uma atmosfera livre de poluição, rodeadas de muita vegetação e imersas na bruma marinha do Atlântico Sul. Estas criaturas têm de 8 a 12 anos de idade, são ligadas por laços de parentesco, consangüíneos ou não, e descendem de antigos açorianos, catarinenses miscigenados migrados do interior, gaúchos, santistas e até mesmo uruguaios. Loiras, morenas, negras, pequenas, grandes, magras, roliças, sardentas ou douradas, estas estrelas são uma bela mostra da diversidade étnica e cultural brasileira. Cultivadas pelo Instituto Ilhas do Brasil , as estrelas vencem a timidez e ousam brilhar neste palco litorâneo, iluminando um entardecer de primavera. Seus pais, mães, tias, irmãos, irmãs, primos e vizinhos assistem e valorizam o despertar da expressão cênica destes pequenos seres, em meio a risadas, muitos braços e pernas, dores de barriga e de cabeça, suor frio e tremedeira.
Durante aproximadamente 30 minutos, 12 crianças apresentam uma pequena encenação denominada Encantadas: Sereias e Iaras, na sede da ONG e no Salão Paroquial da pequena igreja local, fruto de um trabalho entre a referida instituição e meu estágio obrigatório da disciplina de PREAC no curso de Licenciatura em Artes Cênicas da UDESC, Florianópolis, SC.
Durante três meses as crianças do Projeto Estrelas do Mar integraram as oficinas semanais desenhadas no projeto pedagógico Mares do Sul, cujo objetivo foi o de experimentar o fazer teatral através do imaginário infanto-juvenil, desenvolver uma dramaturgia a partir de histórias fantásticas e valorizar a cultura local, consolidando a participação das crianças nas atividades da referida ONG.
Decorrente de um convite realizado pela própria ONG esta prática situa-se na dinâmica do movimento social do seu Programa de Mobilização Comunitária. Existente desde 2005 em Florianópolis, a organização tem como missão empoderar pessoas e instituições para os desafios da sustentabilidade e experimenta o teatro pela primeira vez.“Se em seus primeiros tempos - lá se vão mais de três décadas – o campo da licenciatura visava exclusivamente ao ensino do teatro dentro do sistema educacional, hoje a situação é bem distinta. Demandas de entidades as mais variadas, tanto ligadas à sociedade civil como as ONGs, quanto instituições vinculadas ao poder público na área da cultura como é o caso de centros culturais, além de setores da área da saúde, constituem algumas das múltiplas esferas nas quais processos de criação em teatro - e, de modo mais abrangente, nas artes da cena - revelam uma área em plena expansão” Pupo (2008).
De cunho pedagógico, esta iniciativa acadêmica denominada Projeto Mares do Sul encontrou nesta instituição e nos pequenos moradores da praia do Pântano do Sul, um terreno fértil e acolhedor para o seu desenvolvimento, contrastando com a situação com a qual em geral nos deparamos, estagiários e professores de teatro, no ensino formal da rede pública, claramente explicitada no depoimento abaixo registrado no trabalho de estudantes de Licenciatura na Bahia:
“Impressionante como eles são perturbados. Eles gritam, falam alto, agridem uns aos outros. A sétima B é mais civilizada, mas a sétima A é um inferno. O professor tem que chamar atenção o tempo todo, praticamente gritar. Não respeitam ninguém, todos os professores passam por isso" Farias (2008)
Minha chegada no Pântano do Sul, se inicialmente silenciosa, com o passar do tempo transformou-se em momentos de ruidosa alegria, com crianças que corriam pela rua principal rodeando meu carro, perguntando sobre as atividades da tarde que se iniciava, relatando as novidades, tais como quem tinha ido ao centro ou encontrava-se doente, sobre o motivo de alguma desistência ou ausência, que algumas vezes era parte de um castigo ministrado pelos pais, oferecendo-se para carregar as cestas com o material das oficinas e preparar o que fosse necessário. E se houve participações que reconheci como únicas ou eventuais, em contraponto àquelas freqüentes, muitos daqueles que não continuaram na “ativa” por variados motivos, estiveram na platéia no dia da apresentação final, denominada de Ensaio Aberto de Encantadas: Sereias e Iaras.
As oficinas
O Instituto Ilhas do Brasil tem sua sede numa pequena casinha no centro da localidade do Pântano do Sul e suas portas encontram-se abertas para as crianças, que entram e saem com liberdade a qualquer hora do dia. Acostumadas com encontros anteriores sobre educação ambiental, aulas de surf, dentre outros, apareceram com curiosidade nas oficinas iniciais e várias foram ficando, formando o grupo. As atividades teatrais competiam com os banhos de mar, surf na água e nas areias, idas ao centro e à casa de parentes, cursos de outras modalidades, aula de informática, médicos, dentistas, gripes e tantas outras; mesmo assim obtiveram uma freqüência mínima de 8 crianças, numa sexta feira chuvosa, até 20 crianças, no dia da Caça ao Tesouro, ou melhor, às Histórias, atividade que se deu pela própria vila. Mantivemos as portas e as oficinas abertas para que qualquer criança pudesse chegar, a qualquer hora e em qualquer estágio do processo e participar, exceção feita ao último ensaio e ao Ensaio Aberto, quando definimos participação apenas do elenco e auxiliares. Apoiada incondicionalmente durante todo o processo pela Oceanógrafa Ana Franco, integrante da ONG, pudemos apresentar uma pequena encenação denominada Encantadas: Sereias e Iaras no Salão Paroquial da localidade.
A experiência utilizou a contação de histórias, jogos teatrais de Viola Spolin e elementos do Drama Inglês, prática trazida para o Brasil pela professora Beatriz Cabral como um método para o ensino de teatro (Cabral, 2006; Desgranges 2006). O pré-texto surgiu de uma história contada por um dos membros da comunidade e norteou os trabalhos conduzindo o processo posterior de criação, animado por uma “cesta” de estímulos (Cabral, 1998) e pela atuação da professora personagem (Vidor, 2008), que integrou a apresentação final, como uma velha narradora. A utilização de diferentes locais para um dos encontros e para a apresentação final inspirou-se nos procedimentos do Teatro em Trânsito proposto por Cabral (2004), a fim de promover um diálogo com a comunidade, e introduzir o fazer teatral além do grupo das crianças que freqüentou as oficinas. Construímos uma pequena dramaturgia que costurou histórias coletadas, histórias imaginárias criadas pelas crianças, mitos relacionados à temática e informações correlacionadas que enriqueceram o conhecimento geral dos jovens. As histórias escolhidas versavam sobre as Encantadas, e tinham como pano de fundo localidades do sul da Ilha de Santa Catarina; durante o processo foram incrementadas, e posteriormente montadas num mosaico de pequenas cenas durante aproximadamente 30 minutos.
Dentro dos limites impostos pelo tempo disponível as oficinas aproximaram as crianças de vários elementos e etapas do fazer teatral, que abarcaram desde a arte da interpretação e os ensaios, cenografia e figurino, sonoplastia, produção, direção, importância do contra-regra e do assistente de direção, a simbologia possível de elementos não realistas, a relação com a platéia, até a tênue relação entre a realidade e a ficção.
Surpresa com a ótima receptividade dos pais e dos integrantes da ONG procurei subsídio em Paulo Freire (2007), em sua obra Pedagogia da Autonomia, onde nos diz dos saberes necessários à prática educativa, para tentar explicar a mim mesma o motivo do sucesso.
A pedagogia do teatro: produto e processo de vida
Durante mais de 40 h de duração do projeto duas metas principais conduziram meu trabalho com as crianças. A primeira delas, acima citada, foi a de apresentá-los ao fazer teatral concomitantemente à elaboração de um pequeno produto final, e a segunda, a de promover o respeito à vida como base dos relacionamentos com os outros seres humanos e com a natureza. É evidente que uma pequena encenação, em condições físicas não adequadas para ensaio e apresentação, com crianças ainda iniciantes na arte da interpretação e dramaturgia pouco trabalhada, não brilhou pela virtuose do produto, mas sim pela qualidade do processo: o crescimento dos indivíduos que se deu a partir das relações no grupo. Dentre as condições desta pedagogia freiriana de referência, a qual conforma uma prática educativo-crítica, encontra-se o estado de inacabamento, qualidade inerente à prática teatral, tanto nos ensaios como nas temporadas, profissionais ou amadoras. Uma cena nunca está completamente pronta e mesmo que esteja ainda será refeita em sua próxima exibição, posto que o teatro é sempre uma re-presentação. Logo, se hoje a experiência não foi boa, não tem problema, pois amanhã poderemos fazer melhor ou até diferente, no caso de alguém faltar, ou retornar. Acredito que esta qualidade dinâmica do fazer teatral tenha sido de grande valia para as crianças. Porém, se por um lado esta possibilidade de um eterno recomeçar foi bastante desgastante para a professora/diretora/dramaturga, e também para algumas crianças mais sistemáticas e compromissadas com o processo, por outro pressionou o abandono de um suposto virtuosismo a ser alcançado e a quebra da prepotência ou aparente superioridade de algumas crianças, em geral meninas, mais organizadas, determinadas e supostamente mais capazes.
Aparentados, vizinhos, amigos e por vezes inimigos, as crianças traziam para o grupo suas amizades e rusgas, que poderiam parecer pequenas ou insignificantes. Revelaram-se em cochichos, parcerias, novos integrantes trazidos pelos amigos, e nas briguinhas, tapas ocasionais, e, em alguns casos na tentativa de desistência de participação de alguns pelo sofrimento gerado pelas observações ou jocosidades feitas pelos colegas. Mas para que o jogo teatral fosse possível foi preciso construir o grupo e para isso tivemos, todos, que resistir, persistir, flexibilizar e sobrepujar: sem atores não haveria teatro, e a oficina estava aberta a todos, sem distinção. A cada desavença, para cada criança que ”emburrava” havia um estímulo para que os próprios colegas interviessem tentando recuperá-la para o grupo, além das ações realizadas neste sentido pelos adultos envolvidos. As desqualificações individuais não foram aceitas, minha autoridade de diretora–professora foi colocada claramente sem demagogia, e desde o primeiro encontro estipulamos que o respeito ao outro, qual fosse, seria cultivado. Assim criava-se o espaço para que os sujeitos pudessem aflorar com menos receio, dando idéias, improvisando, arriscando o corpo-mente nas atividades propostas. Paulo Freire diz que ensinar não é transmitir conhecimento, mas sim criar condições para a sua própria produção ou conhecimento, o que exige o reconhecimento e a assunção da identidade cultural: uma das tarefas mais importantes da prática educativo-crítica é propiciar as condições em que os educandos em suas relações uns com os outros e todos com o professor(a) ensaiam a experiência profunda de assumir-se(p 41).
É interessante notar que todas as crianças envolvidas tinham as condições básicas de moradia, alimentação, saúde e escola. A vila, afastada do centro maior e encravada no canto sudeste da Praia do Pântano do Sul propicia a estas crianças uma excelente qualidade de vida: ar puro, peixe fresco, liberdade para brincar pelas ruas, a praia, o mar, a escola pública na rua central, ao lado o posto de saúde, em frente a pequena igreja...
Mas, como a sociedade via de regra se encontra em transformação, sempre existem antagonismos e contradições a serem superadas. Para Paulo Freire o conflito é o motor da história, das mudanças, e para resolvê-los é preciso alegria e esperança para que o oprimido possa ser sujeito de sua transformação. No Pântano do Sul, assim como em outras localidades pesqueiras da Ilha de Santa Catarina, onde até poucas décadas atrás se organizava apenas a pequena produção pesqueira também denominada de artesanal (Diegues, 1983; Medeiros 2001), hoje vemos o novo e o velho se encontrando, provocando tensões e evidenciando suas contradições. “o novo e o tradicional convivem na Barra da Lagoa. Os meninos aprendem desde cedo a conduzir pequenas embarcações com varas de bambu e a matar peixe com todo tipo de apetrechos. Com a urbanização e o aumento populacional, os pescadores não abandonaram a tradicional atividade, mas passaram a exercê-la paralelamente com outras ocupações, como fazer passeios de barco ou alugar casas para os turistas no verão”. Telles (2002)
A Ong Ilhas do Brasil possibilita projetos que possam “empoderar” estas comunidades neste momento de profunda transformação social, em direção à sua sustentabilidade. Inseridas neste contexto as atividades teatrais visaram fortalecer as crianças reconhecendo e valorizando sua identidade local e estimulando um diálogo com o mundo “lá de fora”, de um Brasil continental. Parti do princípio de que o risco é uma característica já inerente à própria produção pesqueira e que seria possível uma correlação entre uma das características das atividades pesqueiras, a insegurança que permeia a vida de alguns dos pais ou parentes das crianças, ou mesmo o entorno social e geográfico, e o medo e a incerteza que o fantástico poderia lhes inspirar. Em geral as histórias surreais encantam, motivam e divertem as crianças, ao mesmo tempo em que valorizam a memória ficcional/real local, aproximam gerações, e permitem o enfrentamento do desconhecido, fortalecendo os jovens. Mesmo tendo optado pelas histórias menos assustadoras, por motivos que não serão discutidos aqui, o próprio receio de se colocarem frente à platéia numa situação ainda tão precoce de desenvolvimento da arte da atuação, pode ser comparado à esta sensação de insegurança. E finalmente 12 crianças chegaram ao dia D, enfrentando os ensaios, escolhendo dedicar seu tempo às atividades formativas, e finalmente, superando seus receios e colocando-se em cena.
Teatro comunidade é forma de intervenção no mundo
Comunidade, segundo Viganó (2006), tem raiz no latim communis, que significa aquilo que é distribuído entre todos, bem comum e cum múnus, aquele que faz o que tem que fazer junto com os outros. Para a autora, que trabalha com ações sócio-culturais com comunidades de baixa renda, a construção de um senso de comunidade é possibilitada pelo envolvimento com as práticas teatrais cujo aprendizado se dá ao se compartilhar experiências.
O Instituto Ilhas do Brasil tem sua base de ação na comunidade e nos processos de associativismo e cooperação e as oficinas estiveram sempre voltadas a estimulá-los. O Projeto Mares do Sul tentou equilibrar o investimento entre o a qualidade do processo e do produto final, isto é nas relações entre as crianças e no aprendizado das especificidades teatrais, a fim de manter o respeito à autonomia dos pequenos seres ali presentes, no eterno jogo de liberdade e autoridade. O retorno entusiasmado demonstra que as práticas teatrais podem intervir a favor de uma vida coletiva mais rica e diversa, fortalecendo os indivíduos.
Mas se teatro é jogo, é troca, é encontro, a comunidade do Pântano do Sul oferece condições excelentes que possibilitam este fazer, estimulando futuros projetos neste local, também empoderando aprendizes de professores e diretores. Além de ser um campo privilegiado pela sua beleza cênica, a comunidade local mostrou-se muito receptiva e esta experiência me indicou que, tanto o Drama Inglês como o Teatro em Trânsito, são metodologias que podem servir de base para compor um processo/produto artístico que valorize o Pântano do Sul, sua cultura, o modo de vida de seus habitantes e que, com sorte, possa colocá-los numa relação inusitada com a sociedade midiática. É de interesse da autora a continuidade dos trabalhos, já que fiquei contagiada pela alegria e otimismo das Pequenas Estrelas do Pântano do Sul.
Bibliografia
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